Por Eduardo Feldberg
Há
alguns meses, iniciei a delicada empreitada de escrever sobre o uso de
tatuagens e piercings, e, no decorrer do artigo, entrei na complexa
questão dos escândalos. Ali, o assunto foi se prolongando tanto que
decidi resumir lá, e me aprofundar aqui! Neste estudo, escreverei sobre
este tema, que infelizmente é muito mal esclarecido, e acaba
prejudicando os cristãos e denegrindo a imagem do verdadeiro
cristianismo.
A
questão dos escândalos é de suma importância para nós, pois, quando mal
interpretada, pode adulterar ou até mesmo erradicar algumas essências
cristãs, como a liberdade e a individualidade, em detrimento de alguma
tentativa equivocada de expressar o amor ao próximo. Prevejo que terei
um pouco de trabalho em escrever este artigo, pois como se trata de
outro assunto bem arraigado na mente de muitos, há várias formas de se
pensar, entender e agir relacionadas a ele, mas como precisamos ter
conceitos e posicionamentos bem definidos, não me furtarei de analisar
essa questão!
1) O QUE MUITOS ENTENDEM POR ESCÂNDALO
Hoje em dia, a maioria das pessoas entende que “um escândalo é tudo aquilo que eu faço que outra pessoa não gosta”,
mas, precisamos convir que essa definição é muito vaga e
discriminatória. Vamos analisar a interpretação que alguns têm sobre o
assunto, com base em uma ferramenta da Lógica chamada silogismo, isto é,
uma estrutura de raciocínio usada para se chegar a uma conclusão,
baseada em duas afirmações pré-concebidas, e até o fim deste artigo,
veremos se esta definição é correta ou não. A compreensão mais
difundida, e sumariamente aceita pelos cristãos, é a seguinte:
A) Escandalizar o próximo é fazer algo que ele não gosta;
B) Os cristãos se baseiam no amor, e, por isso, não devem fazer o que o próximo não gosta;
C) Logo, não devo fazer nada que meu próximo não goste, para não escandalizá-lo!
Apesar
de ser comum e quase consensual, este raciocínio é falho em todas as
linhas, e como é de se esperar, uma pessoa baseada nesta falácia pode
gerar muitos problemas! Vejamos alguns exemplos práticos e corriqueiros:
Exemplo 01:
-
A) João não gosta de percussão;
-
B) Os membros da igreja do João o amam, portanto, não devem escandalizá-lo;
-
C) Na igreja do João, ninguém pode tocar percussão!
Exemplo 02:
-
A) Isabel entende que usar calça é incorreto;
-
B) Os membros da igreja da Isabel a amam, portanto, não devem escandalizá-la;
-
C) Logo, na igreja da Isabel, nenhuma mulher pode usar calça!
O
silogismo usado acima ilustra um pouco do que as igrejas atualmente
reconhecem como um escândalo, mas está totalmente errado, pois não faz o
menor sentido todos terem que se adaptar às preferências ou
posicionamentos de uma única pessoa, final, agindo assim, a Igreja de
Cristo se tornaria uma instituição legalista, discriminatória,
aprisionadora, vexatória, que desrespeita a identidade das pessoas, as
sadias preferências dos indivíduos e a tão custosa liberdade conquistada
por Jesus para nós! Não faz sentido afirmar que todos os cristãos
precisam se adequar às preferências de uma pessoa, senão seria uma
bagunça imensa, e uma falta de liberdade de expressão infinita, você não
concorda?
Vamos
analisar esta questão com base no que a Palavra de Deus nos diz, a fim
de termos um posicionamento convicto sobre o assunto!
2) O QUE A BÍBLIA DIZ?
Como
cristãos, baseamo-nos na Palavra de Deus, que é nosso manual de fé e
prática, portanto precisamos nos ater ao que a Bíblia ensina a respeito
deste assunto. Em Mateus 18.6-7, Jesus diz:
"Mas,
qualquer que escandalizar um destes pequeninos, que creem em mim,
melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de azenha, e se
submergisse na profundeza do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos;
porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o
escândalo vem!" (Versão ACR)
Isso
nos dá a entender que cometer um escândalo é pecado, pois Deus
provavelmente julgará os que assim o fizerem, afinal, é por meio dos
escândalos que os pequeninos ou outras pessoas podem se perder, e se
afastar dos caminhos do Senhor, porém, ainda precisamos definir o que é
um escândalo.
Com
base nestes versículos, alguns apressados já vão fazendo suas
conclusões, sem lembrar que a Bíblia é composta por mais de trinta mil
versículos, e não apenas por estes dois! Suponhamos que um cristão
desavisado, embasado nestes versículos, afirme convictamente:
- Cometer escândalos é pecado!
Essa pessoa estará inevitavelmente acusando Jesus de pecador, afinal, Jesus escandalizou inúmeras pessoas!
- Ora, Eduardo! Não fale besteira! O próprio Jesus disse que escândalos são pecados!
Realmente,
como lemos acima, Cristo disse que os escândalos sempre aconteceriam,
mas que devemos nos esforçar para que não venham através de nós, porém, é
fato que Jesus mesmo escandalizou inúmeras pessoas! Veja só:
"Então,
acercando-se dele os seus discípulos, disseram-lhe: Sabes que os
fariseus, ouvindo essas palavras, se escandalizaram? Ele, porém,
respondendo, disse: Toda a planta, que meu Pai celestial não plantou,
será arrancada. Deixai-os; são condutores cegos. Ora, se um cego guiar
outro cego, ambos cairão na cova." Mateus 15.12-14 (ACR)
Nesta
situação, os fariseus se “escandalizaram” porque tinham o ritual de
lavar as mãos antes de comer, e Jesus ignorou isso, e os censurou
duramente por seu legalismo! Jesus estava “escandalizando” seus
ouvintes, sabia disso, mas não se importou, e, despreocupado, prosseguiu
com Sua repreensão. É curioso e interessante perceber que, ao que
parece, Jesus escandalizou nada menos que os sacerdotes, fariseus e
saduceus, ou seja, toda a nata religiosa da época! Como se fosse pouco
dizer que Jesus cometeu escândalos, o próprio Deus vai além, e diz em
Sua Palavra que Jesus é considerado uma Pedra de Escândalo! Nossa tradução diz Pedra de Tropeço e Rocha de Escândalo, numa tradução das palavras gregas πέτρα σκανδάλου (petra skandalon)
escritas em Romanos 9.33, I Pedro 2.8 e Isaías 8.14. É curioso que,
atualmente, usamos estas palavras para zombar de alguém, ou humilhar,
como se fosse um termo pejorativo, mas na verdade, na Bíblia, esse termo
é usado numa referência a Jesus Cristo, pois Ele faria muitos
tropeçarem!
Desta forma, se afirmarmos que todo escândalo é pecado, entramos num paradoxo:
Cristo é totalmente santo (ou seja, sem pecado), e mesmo assim, escandalizou pessoas!
Parece-nos uma contradição, porém, como disse John Newton,
“Atribuirei todas as aparentes incoerências da Bíblia à minha própria ignorância.”
Certos de que a Bíblia está sempre certa, resta-nos admitir que:
1) NEM TODO ESCÂNDALO É PECADO, OU...
2) NEM TUDO QUE PARECE UM ESCÂNDALO REALMENTE O É!
A
Palavra de Deus precisa ser estudada e compreendida, para que seja
corretamente entendida, e, se num lugar ela diz que é errado cometer
escândalos, e noutro, diz que Jesus os cometeu, precisamos decifrar
isso! Para sanar essa questão, vamos verificar o que realmente é um
escândalo, e o que é simplesmente uma preferência baseada num erro ou
numa tradição humana, como o caso dos fariseus acima.
3) O QUE REALMENTE É UM ESCÂNDALO?
Em meus artigos, há dois procedimentos que considero cruciais:
1) Ressaltar afirmações
e definições importantes, a fim de deixá-las bem claras em nossa mente,
mesmo que, para isso, tenha que me valer de repetições um pouco
enfadonhas;
2) Conceituar bem cada termo, a fim de definir e delinear a abrangência de seu significado.
Neste artigo, nossa grande definição será a do termo escândalo, e é essa definição que repetirei algumas vezes, para não esquecermos sua correta definição.
Escândalo
é uma palavra proveniente do grego σκανδαλων (skandalon), e, segundo o
Dicionário do Novo Testamento Grego, pode ser traduzida, dentre outras
possibilidades, como “tropeço” ou “obstáculo”, no sentido de que um
skandalon é tudo aquilo que faz alguém cair (tropeçar), ou que impede o
avanço de seu crescimento ou aprendizado (obstáculo). Etimologicamente, o
termo remete à ideia de um pau de arapuca, ou ao gatilho de uma
ratoeira, no sentido de que o escândalo é algo que leva uma pessoa a
tentação, e então a prejudica. Seguindo este raciocínio, no contexto
cristão, o escândalo é algo que leva uma pessoa a cair no pecado,
tropeçar nos princípios da Palavra, se desviar, ou que tem o poder de
impedir que uma pessoa cresça em sabedoria, conhecimento e aprendizado
cristão.
Porém,
como uma imensidão de outras palavras, o termo “escândalo” é um termo
polissêmico, ou seja, que tem diversos significados diferentes! Assim
como no português há muitas palavras polissêmicas, como, por exemplo, a
palavra manga, que pode significar tanto o fruto de uma mangueira,
quanto uma parte de uma camiseta, ou ainda uma pastagem cerrada para
cavalos e bois, o grego também tem suas polissemias, e a palavra
escândalo é uma delas! No Dicionário Grego-Português, verifiquei que o
termo escandalizar pode significar pelo menos três ações:
1) Escandalizar; levar a pecar;
2) Escandalizar; abandonar a fé;
3) Escandalizar; ofender; aborrecer.
E
como um único termo (escandalizar) pode designar as três ações,
precisamos analisar o contexto do versículo para definir qual das
“alternativas” melhor se enquadra na situação. Veja a palavra carne, por exemplo. Uma única palavra (carne) pode significar:
-
Tecido muscular que envolve o corpo humano (Gn. 2.21)
-
Carne dos animais, que alimenta o homem (Gn. 9.4)
-
A totalidade do corpo humano (Nm. 8.7)
-
A totalidade dos seres vivos (Sl. 136.25)
-
Natureza humana corruptível (Jo. 3.6)
-
Pode significar algo bom (Ez. 11.19)
-
Pode significar algo ruim (Rm. 8.6)
-
Etc...
Ela
tem mais de um significado, e, de acordo com o contexto do versículo,
podemos entender qual tipo de carne está sendo citada! No caso dos
escândalos, é a mesma coisa! Precisamos analisar o contexto. Vou dar
alguns exemplos:
“Portanto, se o teu olho direito te escandalizar (te levar a pecar),
arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um
dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno”.
Mateus 5.29
“O
que foi semeado em pedregais é o que ouve a palavra, e logo a recebe
com alegria; Mas não tem raiz em si mesmo, antes é de pouca duração; e,
chegada a angústia e a perseguição, por causa da palavra, logo se
escandaliza (abandona a fé).” Mateus 13.20-21
“Mas, para que os não escandalizemos (ofendamos),
vai ao mar, lança o anzol, tira o primeiro peixe que subir, e
abrindo-lhe a boca, encontrarás um estáter; toma-o, e dá-o por mim e por
ti.” Mateus 17.27
(Versículos da Versão ACR, com inclusões em parêntesis feitas pelo próprio autor)
Como
vemos, embora as três ocorrências tragam o termo “escandalizar”, em
cada versículo há um significado diferente! Precisamos entender que nem
sempre um “escândalo” na Bíblia significa o “escândalo” que estamos
acostumados a dar significado, e consequentemente, nem toda vez que a
Bíblia traz o termo escândalo, devemos entender como aquilo que deve a
todo custo ser evitado. É o desconhecimento dessa informação que causa
tanta confusão no meio cristão. O escândalo que deve ser evitado é o ato
que leva alguma pessoa a pecar, ou abandonar a fé, e não aquele que
simplesmente traz descontentamento a alguém, ou que é visto como uma
ofensa sem qualquer embasamento racional.
Essas
são as definições do termo no grego, porém, trazendo para o português, a
coisa não fica tão diferente assim, afinal, o termo escândalo também
tem mais de um significado na língua portuguesa. Consultei alguns
dicionários, como o Michaelis e Aurélio, e resumi as principais
definições do termo “escândalo”:
1)
Ato imoral que gera desgraça a outrem; 2) Violação do que é correto e
moral, e induz outra pessoa ao erro, ao mal ou pecado; 3) Ação que
ofende o decoro ou as concepções morais estabelecidas; 4) Provocação ao
mal pelo mau exemplo; 5) Circunstância ou ação que causa ofensa,
irritação, indignação ou perplexidade em outrem.
Como
podemos ver, há várias possibilidades, porém, nem todas se enquadram na
advertência do Senhor Jesus em Mateus 18.7! Quando Cristo diz que o
escândalo é algo a ser evitado, e que é terrível, está se referindo às
atitudes imorais e pecaminosas que podem prejudicar outras pessoas, e
não apenas a qualquer atitude que cause algum desconforto a outras
pessoas!
- Puxa, Eduardo, mas quem disse isso?
Ninguém
disse isso, mas é algo que precisa ser depreendido do texto! Se a
Bíblia afirma que os escândalos são pecados, ao mesmo tempo em que
afirma que Jesus cometeu escândalos, precisamos estudar isso, e de
alguma forma fidedigna e honesta, concluir que, como já disse, ou nem
todo escândalo é pecado, ou nem tudo que parece ser um escândalo
realmente o é, afinal, se afirmarmos que o simples ato de ofender,
irritar, indignar alguém é pecado, estaremos acusando o Santo Cordeiro
de Deus de pecador, afinal, ele ofendeu e irritou pessoas (leia Mateus
23!), e mesmo assim, continuou sendo santo! Muitas vezes irritaremos
pessoas por optarmos por uma vida santa! Amiúde, indignaremos pessoas
cruéis por optarmos em agir com bondade! Muitos ficarão perplexos quando
dissermos que não frequentaremos determinados lugares. Muitos se
aborrecerão quando negarmos favores opostos aos nossos princípios, e nem
por isso estaremos pecando, muito pelo contrário, nossa santificação e
pureza gerarão irritações, ofensas, indignações e aborrecimentos! Foi o
caso de Jesus, que por ser tão santo e bom, patenteou a religiosidade
dos fariseus.
Além
disso, a simples pesquisa em outras traduções e versões da Bíblia já
deixam claro essa diferenciação nos significados da palavra escândalo.
Vejamos alguns exemplos:
1) Mateus 18.6
-
Almeida Corrigida e Revista (ACR): “- Mas, qualquer que escandalizar um destes pequeninos, que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de azenha, e se submergisse na profundeza do mar.”
-
Nova Versão Internacional (NVI): “- Mas se alguém fizer cair no pecado um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar.”
2) Mateus 18.7
-
Almeida Corrigida e Revista (ACR): “- Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem!”
-
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “- Ai do mundo por causa das coisas que fazem com que as pessoas me abandonem! Essas coisas têm de acontecer, mas ai do culpado!”
3) Mateus 17.27
-
Almeida Corrigida e Revista (ACR): “- Mas, para que os não escandalizemos, vai ao mar, lança o anzol, tira o primeiro peixe que subir, e abrindo-lhe a boca, encontrarás um estáter; toma-o, e dá-o por mim e por ti.”
-
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “- Mas nós não queremos ofender essa gente. Por isso vá até o lago, jogue o anzol e puxe o primeiro peixe que você fisgar. Na boca dele você encontrará uma moeda. Então vá e pague com ela o meu imposto e o seu.”
Como
podemos ver, os coordenadores da tradução Almeida Corrigida e Revista
traduziram os três versículos acima ao pé da letra, ou seja, onde estava
escrito skandalon, no original grego, eles traduziram como “escândalo”,
enquanto os responsáveis pelas traduções NVI e NTLH já analisaram o
contexto, e aplicaram o significado mais específico do termo em cada
situação. Isso porque nem todo “escândalo” (em todos os seus possíveis
significados) são realmente um escândalo que Jesus condenava! Em outras
palavras, podemos afirmar “- Ai dos que escandalizarem (fizerem pecar)”, mas não podemos afirmar “- Ai dos que escandalizarem (ofenderem)”.
O
escândalo que o Senhor abomina nada tem a ver com a mera preferência,
gosto particular ou desejos de uma pessoa, que se não forem alcançadas,
podem gerar alguma ofensa ou insatisfação, mas tem sempre a ver com um erro que gera outro erro, um mal que gera outro mal ou um pecado que gera outro pecado,
ou seja, o escândalo proibido nada tem a ver com agradar ou desagradar
alguém, mas sim em agir de forma moralmente errada, e consequentemente
prejudicar alguém.
O problema é que, no entendimento de muitos, escandalizar é simplesmente “fazer algo que alguém não gosta”,
mas embora isso também possa ser visto como escândalo, não é o tipo de
escândalo que Jesus proíbe, e de qualquer forma, é evidente que este
raciocínio não faz sentido, afinal, nem sempre agradaremos a todos, como
o próprio Cristo não agradou! O escândalo proibido é aquela ação ou
circunstância que traz a tentação ou pecado a alguma pessoa, e não
simplesmente a discordância ou antipatia, e é muito importante
entendermos isso! Nestes casos, “gosto não se discute”, mas sim aquilo
que leva o próximo ao pecado!
Resumindo,
O escândalo que Jesus proíbe é:
-
Um erro que leva uma pessoa ao erro;
-
Um mal que leva uma pessoa ao mal;
-
Uma imoralidade ou pecado que leva uma pessoa ao pecado.
O escândalo que Jesus não proíbe é:
-
Desagradar alguém (afinal, Jesus também não agradou a todos!);
-
Não fazer o que o próximo quer (afinal, Jesus também não fez, nem faz tudo o que todos querem!).